sexta-feira, 28 de junho de 2013

Roteiro para a prefeitura em quadrinhos





Eu me lembro quando era jovem e tinha poucos problemas. Os maiores eram com a polícia. Eu, na esquerda, estudando, comendo torresmo, bebendo pinga, sempre sentado de jeans, e eles lá, fazendo o trabalho sujo da direita. Um dia, invadiram a biblioteca da escola e eu me escondi no bar de sinuca. Vi que me procuravam. Fugi para a Bolívia porque precisava respirar de novo.
Meus problemas reais então começaram. Estudar em La Paz, comer em La Paz, namorar em La Paz, jogar um futebol violento. Meu fígado estourou. Mas as pessoas eram boas em volta. Não me perturbavam. Cozinhavam e faziam chá para mim, os índios. Era mais barato viver lá do que aqui. Ninguém se preocupava com a limpeza dos banheiros.
Depois que voltei a São Paulo e a política se tornou inevitável, naquele grande clube de amigos da abertura, um entusiasmo cresceu em mim. Pesquisar e dar aulas. A carreira universitária. Tudo bonito, secundário. Dinheiro para os vinhos, o casamento, os filhos, a mulher, o respeito social, estas eram retribuições da política, que eu apenas abraçava na medida da enorme solicitação externa. Não havia quem fizesse tão bem o trabalho que eu fazia.
A gente não imagina que a perseguição ideológica possa nos trazer frutos, mas eles vêm e crescem, como os meninos, os netos, as gravuras. É preciso marcar posição, ter a clareza ou a falta de escrúpulos na medida certa. E então tomamos nossos lugares onde eles nos são devidos.
Cheguei à Câmara, à prefeitura, voltei à Câmara. Um dia as condições políticas me favorecerão à presidência. Os inimigos são tão pouco inteligentes, especialmente os da esquerda operária... São uns falastrões, como eu rio!
Agora, dizem que o meu governo foi o responsável pelo surgimento de todos esses fantasmas que ocupam a cidade. Não estão sendo justos, mas não me importo. Tenho tudo de que preciso, porque as fortunas são feitas na medida do entusiasmo, da cultura, não das notas de cem ou de mil.
É verdade que os fantasmas estão aí, vão e vêm. Fiz o que pude para combatê-los. Ganhamos um rio novo, despoluído, depois que os transportei, maltrapilhos, para uma dezena de albergues e hospitais que eu mesmo construí. Alguns amigos do passado condenaram meu sonho. E os fantasmas.
Acordo de manhã, lá estão eles, me pedindo a esmola que não tenho para dar. E não tenho! O que tenho são meninos, netos e gravuras. Vendi meu piano. Quanto mais olho pela janela,  mais eles aparecem. Sentam-se no café da Oscar Freire e não saem enquanto não lhes dou moedas. Vão aos faróis de trânsito da Vila Beatriz para vender velas sentinelas. O que faço? Há os que tiram a calça para mostrar os genitais encarapichados na Consolação. Andam em bandos, pedindo casas para morrer. Casas para morrer?
No metrô, são duas mães para treze crianças. Elas andam na contramão dos corrimões, gritando para que eu compre Suflair. Dizem assim: sufrér. Tão bonito seria isso num poema de Neruda, sufrer. Digo sempre que a cultura é um grande bem. A gente aprende nas escolas de lata, não aprende?  As injustiças não são eternas. Tire esta arma do meu ouvido. O seu direito termina onde começa o meu. Não há prerrogativa para removidos. Mortos! Os subterrâneos que se entreguem. Dostoievski não cabe no seu mundo como cabia no meu.


(Texto escrito em outubro de 2005)

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