domingo, 6 de outubro de 2013

Pra que discutir com madames.


Dois em um


Não se prenda


Not


Qual que é


Figli maschi


Me equilibro


Buraco em mim


São emaranhados ou ideias


Pertinho do céu


Vejo lua em tudo


De vão em vão


La beauté


Vamos fugir


Irmãos das coisas fugidias


Dois sentidos


Me faça brilhar, me faça correr


Olhos nos olhos


ouvi tudo


Brejo de almas


E sonhe


Corra pra seu sonho


quinta-feira, 4 de julho de 2013

NOVEMBRO NA ALMA - capítulo 5






“Deve-se usar palavras comuns para dizer coisas incomuns”, considerou a certa altura o filósofo Schopenhauer, para quem a expressão breve e clara significava um fundamento, não uma opção de estilo. Estilo, em contrapartida, resumiria a “fisionomia do espírito”, e, como tal, o que ele revelavaria daquela sua Alemanha era algo a lamentar. “A indecisão da expressão torna os escritores alemães intragáveis”, ele declarou. Fichte, Schelling, Hegel _ todos estes “ininteligíveis”, a seu ver, diziam complicado, para nada dizer.

Schopenhauer pregava a inocência, ou o direito a ela, para que todas as iluminações surgissem na escrita, na filosofia, na arte. “A ingenuidade é a veste de honra do gênio, assim como a nudez é a da beleza”, afirmou, contestando o mau hábito de nossos pensadores e escritores de esconder o que têm (ou não) a comunicar em uma expressão difícil, enganadora. Livre, direto, claro, bonito, de um divertido mau humor nacionalista, Schopenhauer compreende em grande parte o mistério de Clarice, o mistério de todos os que buscam um fim para os novembros dentro desse espaço erroneamente diagramado em nosso tempo, o espaço entre a matéria e a ideia, espaço exíguo em que um craque do pensamento e das palavras insere luz.

Mas nada disso me consola. Muito há ainda que não dizer. E é por isso que os novembros de um jornalista são tantos.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

NOVEMBRO NA ALMA - capítulo 4





Perdão para mais um nome aqui, o de Arthur Schopenhauer, autor de “Sobre o Ofício do Escritor”, volume da Martins Fontes em que se reúnem três textos contidos originalmente em “Parerga e paralipomena”, de 1851. O livro é um deleite de espadachim. Nele, o filósofo está muito bravo com os jornalistas de sua época (não terá sido o último depois de Balzac), com a cordialidade que exibiam em relação aos amigos na hora de fazer críticas, comprometidas e analfabetas. Schopenhauer não se conformava com a Alemanha de então, que concedia anonimato aos resenhistas de livros para que eles pudessem, entre outras coisas, desancar um talento novo como o do próprio filósofo. Ele acreditava que quem se favorecia dessa situação eram os medíocres, autorizados a modificar a língua contínua e erroneamente em papel-jornal, desrespeitando todas as leis de sintaxe e lógica, respaldados por um ideal duvidoso de concisão.

“Os chamados doutos emulam com os literatos de jornais e revistas: é uma competição entre a estupidez e a falta de ouvidos”, afirma ele a certa altura do livro, para sentenciar: “A língua alemã foi completamente posta em desordem: todos deitam-lhe a mão, qualquer velhaco rabiscador lança-se sobre ela.”

O livro está cheio dessa compreensão feminina da língua-mãe. Ela é a moça vilipendiada por mãos cabeludas, a vestal denegrida... Para Schopenhauer, o novo não faz bem à mulher-linguagem: raramente o que é novo é bom, e o escritor deve saber ausentar-se das preferências públicas. Há uma compreensão sua de que o grande povo repudia o refinamento da escrita por preferir as novidades _ mais de conteúdo, que ele chama “matéria”, do que de escrita, ou “idéia”. Ao público alemão daquele tempo já bastavam as fofocas dos jornais... Mas, para Schopenhauer, algo mais deveria guiar um leitor. Algo relacionado às iluminações, estas que existiriam naturalmente na escrita de um grande artista. Um verdadeiro escritor trata a língua como o instrumento da descoberta do que um homem é.


terça-feira, 2 de julho de 2013

NOVEMBRO NA ALMA - capítulo 3




Clarice Lispector tinha suas dúvidas. Só sabia que escrevia enquanto escrevia. Por isso, disse, jamais poderia se dizer escritora _ um escritor tem de saber antecipadamente, afinal, como se põe as coisas no papel. É que Clarice tinha muita instrução. Uma obra como a da neo-zelandesa Katherine Mansfield, que a inspirou desde o início em sua atividade literária, não pôde ser tocada por qualquer um. Nem mesmo por Clarice. Mansfield foi um caso isolado de pronunciamento do singelo. Seus contos não tinham começos nem finais. Tinham sugestões, sutilezas, o vento balançando o lenço vermelho. Clarice não sugeria. “A Hora da Estrela” é cabal.

Talvez por intuir isto desde muito cedo, meu embate com os jornais sempre cresceu neste ponto. Se é preciso dizer que um livro é definitivamente bom ou ruim na seção de resenhas, não se deve dizer. As coisas não começam nem terminam. Não somos catálogos de venda de títulos para dar cotações apressadas. Somos alguma coisa da cultura, do vento, do balanço, do lenço vermelho, não do patrocínio. Não deveríamos iludir ninguém agindo assim, embora o façamos continuamente, por uma necessidade que não pára de se reinventar. Os jornalistas culturais são os objetos do delicioso riso público antes e depois do “Ilusões Perdidas”. São, como Balzac os via, críticos e louros! Então, se sou jornalista, não posso me considerar alguém que exatamente “escreve” _ embora, não sendo Clarice, ou Kathe, ou Melville, ou Balzac, ainda me ponha diante da escrita com esse objetivo de afastar os novembros e atingir o que existe.

O diacho é este. Quantos escritores que assim se proclamam sabem realmente escrever? O que é escrever?

segunda-feira, 1 de julho de 2013

NOVEMBRO NA ALMA - capítulo 2






Escrevo se escrever é desligar a televisão e o taxímetro em busca de intimidade. Se é lavar os próprios intestinos, e deixar que o oxigênio os atravesse. Escrevo se escrever é livrar-se desse novembro na alma, abafado, úmido, em busca de um ar frio ou quente, mas ar. Estou falando de um exercício racional que é, a um tempo, meditativo. Quem escreve assim, mesmo que repouse no computador as baboseiras do espírito, está em busca de encontrar o próprio corpo. É claro que essa procura se revela no mais das vezes frustrante e infernal, e não pode se considerar jamais concluída. Mas os músculos da alma, ainda que reconheçam a batalha perdida de antemão, anseiam pela aeróbica simples. “A minha obra é uma tentativa fracassada de atingir o que existe”, disse Clarice Lispector a respeito do fato, num desses cadernos em que o Instituto Moreira Salles recolhe os pedaços de seus autores-fetiche.

Faz bem mencionar Clarice, de um modo ou outro, ainda que ocorra com esta escritora o que ela mesmo lamentava quando viva, ter-se tornado objeto de admiração óbvia e urrante (que urra). O que há em grandeza nesta nossa artista patrimonial é sua noção de importância. “Literata não sou porque não tornei o fato de escrever livros uma profissão, nem uma carreira. Escrevi-os só quando espontaneamente me vieram, e só quando eu realmente quis”, ela crê. “Sou uma amadora? O que sou então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.”

Escrever, então, não é dizer o novo, mas o ancestral, o que existe. E dizer ocasionalmente, quando a hora chega. Afirmou-nos isto a maior literata não-literata brasileira. Mas, então, como é que se escreve?

domingo, 30 de junho de 2013

NOVEMBRO NA ALMA - capítulo 1

NOVEMBRO NA ALMA - capítulo 1 (publicado originalmente em outubro de 2005)





Para quem tem vivido da escrita torta durante duas décadas, como eu, e por escrita torta entenda esta mesma, a do jornal, a da revista em quadrinhos, a dos prefácios brevíssimos, a redação das cartas e apresentações das exposições, das farsas conselheiras das revistas femininas, dos depoimentos alheios plenos de vírgulas, dessa escrita miúda que de tão pequena é também insensível à memória prolongada do leitor de tais imprecisões (leitor apressado, infiel), resta uma pergunta, entre especuladora e melancólica, sobre o ofício de escrever. Será este o meu?

Herman Melville, em “Moby Dick”, dizia que era hora de se lançar ao mar quando, em terra, seu Ismael se via frequentemente parado diante das funerárias, enfileirado nas antesalas dos velórios, disposto a arrancar os chapéus dos passantes um a um. A aventura estava próxima quando um novembro abafado e chuvoso se apossava da alma de seu protagonista.

Chame-me Ismael. Com a distância devida que há entre um Melville e uma escriba funcionária, sei por experiência que é hora de me lançar ao mar, ou escrever, ou tinturar nas telas do computador quimeras desconhecidas e automáticas quando diante de mim estão, por exemplo, uma Oprah Winfrey em luta contra o poderio dos germes nos travesseiros velhos e um motorista de táxi para quem a Terra não é redonda, já que acaba no oceano (e portanto os jornais, como os políticos, mentiram para ele mais uma vez).

sábado, 29 de junho de 2013

não dê comida



Não dê comida aos animais.
Não dê comida a Richele.

Richele é pequena para os 7 anos que tem. E, ao mesmo tempo, mais velha que seus 7 anos. Não sei bem explicar isso. Digo que ela é pequena porque meu irmão, aos 7, bate aqui no meu nariz, e ela, de pé, encosta lá longe, no meu ombro. Mas tenho certeza de que Richele também é mais velha do que esses 7. Mais velha porque sustenta todos os da sua família vendendo balas de goma. Na sua família há o irmão Lucas, de 5, sempre na cola da menina, quieto e sujo. E a mamãe.

A mamãe de Richele é bastante alta. Richele se parece com ela, tem o cabelo crespo claro, os olhos verdes escuros. Com a diferença de que Richele fala bastante, enquanto mamãe, não, está sempre muda, à distância, segurando sacos plásticos. A mamãe espreita.

Richele dá duro, porque vender bala de goma é seu menor trabalho. O que ela tem de mais difícil a fazer é, fingindo vender bala, convencer os bancários que freqüentam a lanchonete a lhe comprar baguete com presunto. Por isso, fala tanto. Li num livro que um deus egípcio inventou as palavras e que seu chefe, o deus Sol, achou isso uma perda de tempo. Se os homens têm tudo escrito e mastigadinho para ler, não guardam nada na cabeça. A cabeça dos homens é um vazio, ele falou. Richele não sabe ler. Será que, por essa razão, sua cabeça guarda tudo, os nomes do presente, as contas do futuro? 

Então, Richele, quando quer dar comida para a mãe, diz que a baguete da cantina é para ela própria. Não acredito que qualquer coisa que Richele peça seja para ela mesma. Minha mãe me disse que existe uma porção de gente adulta atrás dessas crianças, explorando seu trabalho. Talvez aquela moça do plástico não seja a mãe de verdade da menina. Nem mãe de cara, nem mãe de coração. Criança não trabalha, não é? Eu não trabalho. Se trabalhasse, por que daria tudo para minha mãe?

Sei que a vida de Richele não é para a gente gostar. Veja só. De noite, em vez de ter uma televisão diante dela, tem os passantes da praça. E eles são enjoados. Nem olham para ela, não lhe contam histórias. Ainda assim, ela vive rindo para eles. Conversa, conversa, mesmo na chuva, de sandália de plástico quebrada, com todos os que lhe dizem oi. Alguma coisa me conforta em Richele. Não sei se é o fato de ela viver na rua. Não sei se é o fato de ser feliz.

(Texto escrito em outubro de 2005)


sexta-feira, 28 de junho de 2013

Roteiro para a prefeitura em quadrinhos





Eu me lembro quando era jovem e tinha poucos problemas. Os maiores eram com a polícia. Eu, na esquerda, estudando, comendo torresmo, bebendo pinga, sempre sentado de jeans, e eles lá, fazendo o trabalho sujo da direita. Um dia, invadiram a biblioteca da escola e eu me escondi no bar de sinuca. Vi que me procuravam. Fugi para a Bolívia porque precisava respirar de novo.
Meus problemas reais então começaram. Estudar em La Paz, comer em La Paz, namorar em La Paz, jogar um futebol violento. Meu fígado estourou. Mas as pessoas eram boas em volta. Não me perturbavam. Cozinhavam e faziam chá para mim, os índios. Era mais barato viver lá do que aqui. Ninguém se preocupava com a limpeza dos banheiros.
Depois que voltei a São Paulo e a política se tornou inevitável, naquele grande clube de amigos da abertura, um entusiasmo cresceu em mim. Pesquisar e dar aulas. A carreira universitária. Tudo bonito, secundário. Dinheiro para os vinhos, o casamento, os filhos, a mulher, o respeito social, estas eram retribuições da política, que eu apenas abraçava na medida da enorme solicitação externa. Não havia quem fizesse tão bem o trabalho que eu fazia.
A gente não imagina que a perseguição ideológica possa nos trazer frutos, mas eles vêm e crescem, como os meninos, os netos, as gravuras. É preciso marcar posição, ter a clareza ou a falta de escrúpulos na medida certa. E então tomamos nossos lugares onde eles nos são devidos.
Cheguei à Câmara, à prefeitura, voltei à Câmara. Um dia as condições políticas me favorecerão à presidência. Os inimigos são tão pouco inteligentes, especialmente os da esquerda operária... São uns falastrões, como eu rio!
Agora, dizem que o meu governo foi o responsável pelo surgimento de todos esses fantasmas que ocupam a cidade. Não estão sendo justos, mas não me importo. Tenho tudo de que preciso, porque as fortunas são feitas na medida do entusiasmo, da cultura, não das notas de cem ou de mil.
É verdade que os fantasmas estão aí, vão e vêm. Fiz o que pude para combatê-los. Ganhamos um rio novo, despoluído, depois que os transportei, maltrapilhos, para uma dezena de albergues e hospitais que eu mesmo construí. Alguns amigos do passado condenaram meu sonho. E os fantasmas.
Acordo de manhã, lá estão eles, me pedindo a esmola que não tenho para dar. E não tenho! O que tenho são meninos, netos e gravuras. Vendi meu piano. Quanto mais olho pela janela,  mais eles aparecem. Sentam-se no café da Oscar Freire e não saem enquanto não lhes dou moedas. Vão aos faróis de trânsito da Vila Beatriz para vender velas sentinelas. O que faço? Há os que tiram a calça para mostrar os genitais encarapichados na Consolação. Andam em bandos, pedindo casas para morrer. Casas para morrer?
No metrô, são duas mães para treze crianças. Elas andam na contramão dos corrimões, gritando para que eu compre Suflair. Dizem assim: sufrér. Tão bonito seria isso num poema de Neruda, sufrer. Digo sempre que a cultura é um grande bem. A gente aprende nas escolas de lata, não aprende?  As injustiças não são eternas. Tire esta arma do meu ouvido. O seu direito termina onde começa o meu. Não há prerrogativa para removidos. Mortos! Os subterrâneos que se entreguem. Dostoievski não cabe no seu mundo como cabia no meu.


(Texto escrito em outubro de 2005)