quinta-feira, 4 de julho de 2013

NOVEMBRO NA ALMA - capítulo 5






“Deve-se usar palavras comuns para dizer coisas incomuns”, considerou a certa altura o filósofo Schopenhauer, para quem a expressão breve e clara significava um fundamento, não uma opção de estilo. Estilo, em contrapartida, resumiria a “fisionomia do espírito”, e, como tal, o que ele revelavaria daquela sua Alemanha era algo a lamentar. “A indecisão da expressão torna os escritores alemães intragáveis”, ele declarou. Fichte, Schelling, Hegel _ todos estes “ininteligíveis”, a seu ver, diziam complicado, para nada dizer.

Schopenhauer pregava a inocência, ou o direito a ela, para que todas as iluminações surgissem na escrita, na filosofia, na arte. “A ingenuidade é a veste de honra do gênio, assim como a nudez é a da beleza”, afirmou, contestando o mau hábito de nossos pensadores e escritores de esconder o que têm (ou não) a comunicar em uma expressão difícil, enganadora. Livre, direto, claro, bonito, de um divertido mau humor nacionalista, Schopenhauer compreende em grande parte o mistério de Clarice, o mistério de todos os que buscam um fim para os novembros dentro desse espaço erroneamente diagramado em nosso tempo, o espaço entre a matéria e a ideia, espaço exíguo em que um craque do pensamento e das palavras insere luz.

Mas nada disso me consola. Muito há ainda que não dizer. E é por isso que os novembros de um jornalista são tantos.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

NOVEMBRO NA ALMA - capítulo 4





Perdão para mais um nome aqui, o de Arthur Schopenhauer, autor de “Sobre o Ofício do Escritor”, volume da Martins Fontes em que se reúnem três textos contidos originalmente em “Parerga e paralipomena”, de 1851. O livro é um deleite de espadachim. Nele, o filósofo está muito bravo com os jornalistas de sua época (não terá sido o último depois de Balzac), com a cordialidade que exibiam em relação aos amigos na hora de fazer críticas, comprometidas e analfabetas. Schopenhauer não se conformava com a Alemanha de então, que concedia anonimato aos resenhistas de livros para que eles pudessem, entre outras coisas, desancar um talento novo como o do próprio filósofo. Ele acreditava que quem se favorecia dessa situação eram os medíocres, autorizados a modificar a língua contínua e erroneamente em papel-jornal, desrespeitando todas as leis de sintaxe e lógica, respaldados por um ideal duvidoso de concisão.

“Os chamados doutos emulam com os literatos de jornais e revistas: é uma competição entre a estupidez e a falta de ouvidos”, afirma ele a certa altura do livro, para sentenciar: “A língua alemã foi completamente posta em desordem: todos deitam-lhe a mão, qualquer velhaco rabiscador lança-se sobre ela.”

O livro está cheio dessa compreensão feminina da língua-mãe. Ela é a moça vilipendiada por mãos cabeludas, a vestal denegrida... Para Schopenhauer, o novo não faz bem à mulher-linguagem: raramente o que é novo é bom, e o escritor deve saber ausentar-se das preferências públicas. Há uma compreensão sua de que o grande povo repudia o refinamento da escrita por preferir as novidades _ mais de conteúdo, que ele chama “matéria”, do que de escrita, ou “idéia”. Ao público alemão daquele tempo já bastavam as fofocas dos jornais... Mas, para Schopenhauer, algo mais deveria guiar um leitor. Algo relacionado às iluminações, estas que existiriam naturalmente na escrita de um grande artista. Um verdadeiro escritor trata a língua como o instrumento da descoberta do que um homem é.


terça-feira, 2 de julho de 2013

NOVEMBRO NA ALMA - capítulo 3




Clarice Lispector tinha suas dúvidas. Só sabia que escrevia enquanto escrevia. Por isso, disse, jamais poderia se dizer escritora _ um escritor tem de saber antecipadamente, afinal, como se põe as coisas no papel. É que Clarice tinha muita instrução. Uma obra como a da neo-zelandesa Katherine Mansfield, que a inspirou desde o início em sua atividade literária, não pôde ser tocada por qualquer um. Nem mesmo por Clarice. Mansfield foi um caso isolado de pronunciamento do singelo. Seus contos não tinham começos nem finais. Tinham sugestões, sutilezas, o vento balançando o lenço vermelho. Clarice não sugeria. “A Hora da Estrela” é cabal.

Talvez por intuir isto desde muito cedo, meu embate com os jornais sempre cresceu neste ponto. Se é preciso dizer que um livro é definitivamente bom ou ruim na seção de resenhas, não se deve dizer. As coisas não começam nem terminam. Não somos catálogos de venda de títulos para dar cotações apressadas. Somos alguma coisa da cultura, do vento, do balanço, do lenço vermelho, não do patrocínio. Não deveríamos iludir ninguém agindo assim, embora o façamos continuamente, por uma necessidade que não pára de se reinventar. Os jornalistas culturais são os objetos do delicioso riso público antes e depois do “Ilusões Perdidas”. São, como Balzac os via, críticos e louros! Então, se sou jornalista, não posso me considerar alguém que exatamente “escreve” _ embora, não sendo Clarice, ou Kathe, ou Melville, ou Balzac, ainda me ponha diante da escrita com esse objetivo de afastar os novembros e atingir o que existe.

O diacho é este. Quantos escritores que assim se proclamam sabem realmente escrever? O que é escrever?

segunda-feira, 1 de julho de 2013

NOVEMBRO NA ALMA - capítulo 2






Escrevo se escrever é desligar a televisão e o taxímetro em busca de intimidade. Se é lavar os próprios intestinos, e deixar que o oxigênio os atravesse. Escrevo se escrever é livrar-se desse novembro na alma, abafado, úmido, em busca de um ar frio ou quente, mas ar. Estou falando de um exercício racional que é, a um tempo, meditativo. Quem escreve assim, mesmo que repouse no computador as baboseiras do espírito, está em busca de encontrar o próprio corpo. É claro que essa procura se revela no mais das vezes frustrante e infernal, e não pode se considerar jamais concluída. Mas os músculos da alma, ainda que reconheçam a batalha perdida de antemão, anseiam pela aeróbica simples. “A minha obra é uma tentativa fracassada de atingir o que existe”, disse Clarice Lispector a respeito do fato, num desses cadernos em que o Instituto Moreira Salles recolhe os pedaços de seus autores-fetiche.

Faz bem mencionar Clarice, de um modo ou outro, ainda que ocorra com esta escritora o que ela mesmo lamentava quando viva, ter-se tornado objeto de admiração óbvia e urrante (que urra). O que há em grandeza nesta nossa artista patrimonial é sua noção de importância. “Literata não sou porque não tornei o fato de escrever livros uma profissão, nem uma carreira. Escrevi-os só quando espontaneamente me vieram, e só quando eu realmente quis”, ela crê. “Sou uma amadora? O que sou então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.”

Escrever, então, não é dizer o novo, mas o ancestral, o que existe. E dizer ocasionalmente, quando a hora chega. Afirmou-nos isto a maior literata não-literata brasileira. Mas, então, como é que se escreve?